Algum nível de atividade antiviral deste fármaco já foi previamente relatado por alguns autores contra vírus de DNA e RNA, incluindo vírus respiratório sincicial (RSV), influenza, coronavírus, rotavírus, dengue, vírus da hepatite B e C e outros, todavia, há diversos aspectos que devem ser considerados na avaliação do peso das evidências e próximos passos, afirma especialista em risco toxicológico.
Após uma sequência de fatos no mundo científico e político, o medicamento Cloroquina esteve nos holofotes da imprensa nacional e internacional, com evidentes controvérsias na interpretação de estudos de eficácia em diferentes países e opiniões das mais diversas sobre as evidências de seus benefícios ou riscos no tratamento da COVID-19.
Como resultado imediato no Brasil, foi observado esvaziamento de plateleiras do medicamento Hidroxicloroquina em várias farmácias. Com as ruas também relativamente vazias, se sugere de modo mais evidente que ainda não está disponível um medicamento ou vacina para combate efetivo ao SARS-CoV-2 (ou para uma clara redução da letalidade da doença ou da incidência da síndrome respiratória aguda grave).
Na quarta-feira (15/4), o ministro de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, Marcos Pontes, informou sobre uma pesquisa desenvolvida pelo CNPEM, em que foram avaliadas 2000 moléculas (ativos de medicamentos já aprovados, como estratégia de reposicionamento), e após esta triagem, 5 principais foram consideradas promissoras. Quinta (16/4), apesar dos resultados promissores preliminares, matérias com tom de descoberta foram publicadas em diversos meios de comunicação “Brasil descobre remédio com 94% de eficácia no combate à Covid-19”. Por questões de segurança, segundo matéria publicada no portal CNPEM, o nome do medicamento selecionado seria mantido em sigilo até que os resultados dos testes clínicos demonstrassem sua eficácia em pacientes.
Com a inclusão da ANVISA do medicamento nitazoxanida (nome comercial de “Annita”) na lista de substâncias sujeitas a controle especial através da RDC372/2020, o “segredo” foi de certa forma revelado, e uma provável corrida às farmácias e prescrições pode mais uma vez ocorrer neste novo cenário. De fato, quais são as evidências de eficácia? Estamos diante da cura da Covid-19? Há riscos no uso da nitazoxanida?
Sobre o fármaco nitazoxanida (NTZ)
A cautela e o princípio da precaução devem ser a tônica do momento, embora sejam promissores os resultados apontados pelos estudos recentes, e que só poderão ser confirmados através das observações dos estudos clínicos. Algum nível de atividade antiviral deste fármaco já foi previamente relatado por alguns autores.
O fármaco nitazoxanida (NTZ) é um fármaco da classe das tiazolidas, com amplo expectro de ação contra helmintos, protozoários, microorganismos aeróbios e anaeróbios, de uso humano e veterinário, com farmacocinética e metabolismo avaliados em diversos estudos com animais e humanos. Em estudos com ratos, camundongos e cães, verificou-se que o fármaco é rapidamente hidrolisado por esterases para formação do metabólito tizoxanida (T), e sofre rápida conjugação com ácido glicurônico . A mesma via de formação do metabólito T tem sido proposta para outras espécies de animais além de ratos, tais quais, galinhas e cobaias.
Após administração em humanos, o fármaco é completamente metabolizado (o precursor não é encontrado no plasma), e o metabólito ativo tizoxanida é a principal forma mensurada no plasma humano e a única forma encontrada nas fezes e urina. Ao metabólito ativo tizoxanida, além de atividade antiparasitária, têm sido atribuídas as atividades antimicrobiana e antiviral da droga, apontadas por alguns autores (listados ao final da matéria técnica).
Prudência e olho nas evidências
Algumas matérias apresentam ao público um “remédio com 94% de eficácia no combate à Covid-19” que ainda não existe. Os 94% de eficácia de um medicamento contra o SARS-CoV-2 em um teste in vitro, não significa ainda que este fármaco alcançará o vírus em todos os compartimentos biológicos (até então, aparentemente, pulmões, músculos e outros locais que provavelmente ainda não descobrimos) e que conseguirá combatê-lo ou que terá este nível de eficácia em humanos. Parafraseando alguns de nossos colegas cientistas, a água sanitária apresenta 100% de eficácia contra o SARS-CoV-2 in vitro, ainda sim, a ciência e sã consciência não nos indicam tomá-la.
Além dos efeitos adversos já conhecidos para a nitazoxanida apontados nas indicações terapêuticas como um antiparasitário (relativamente leves) e interações medicamentosas importantes (ex: potenciação de efeito de anticoagulantes como a varfarina, devido à ampla ligação a proteínas plasmáticas e aumento da fração livre, com alguma importância no arsenal de tratamento da COVID-19), somente os estudos clínicos poderão apontar os riscos existentes para pacientes com COVID-19. As condições de exposição, tais quais, doses, regime de administração, duração do tratamento para a nova condição clínica, e todas as variáveis relacionadas ao status dos grupos de pacientes constituem um novo cenário. Ao antecipar qualquer prescrição ou tratamento antes de conhecer as evidências clínicas dos estudos com humanos, se assume deliberadamente um nível de risco que não foi avaliado na contrapartida de um benefício que também não foi comprovado. Portanto, não seria justificada como critério clínico, mas como uma presunção sem base científica.
Como no caso da fosfoetanolamina, cloroquina, e agora, nitazoxanida, observa-se mais uma vez uma série de desacertos e desmedidas na comunicação de achados científicos, que podem potencialmente agravar as crises confundindo prescritores, gestores (alguns leigos e/ou de outras áreas de atuação) e a população. Como especialistas, podemos claramente filtrar estas informações, ao aferir o peso das evidências, ao contrapor todas as incertezas (do estudo, do fênomeno estudado, dos achados apresentados e outros) na análise de riscos e benefícios, segundo o que os estudos científicos permitem (ou não permitem) afirmar.
O acesso a este filtro é extremamente desigual, dando espaço a aferições com lastros ideológicos, esperanças, fantasias, preferências e outros que não alteram os fatos ou a eficácia de um medicamento, salvo, efeitos placebos e nocebos que estão no plano da parte mágica da mente humana. Somente a ciência pode nos livrar destas armadilhas que poderiam não ter permitido que chegássemos até o status de desenvolvimento científico que temos hoje. Não vamos retroceder todo este caminho.
Medicamento não tem preferência ideológica e não pergunta ao seu paciente sua preferência para entrar numa célula e agir contra o vírus. Ele funciona ou não funciona para uma determinada população com determinada doença ou condição clínica sob determindas condições-teste, e para isso, a ciência (com o lastro da pesquisa clínica em métodos estatísticos, comparação com grupos-controle, e outros) nos apresentará algum achado com algum peso de evidência. Destaco: “algum peso de evidência”. Nem cientistas e nem leigos podem tratar estudos isolados ou matérias como verdade científica absoluta, e, só uma avaliação do peso das evidências extraída de todos estudos disponíveis (contrapondo os fatores de incerteza de cada estudo) nos permitirá fazer ciência em seu sentido mais genuíno e íntegro.
Sobre o autor:
Carlos Eduardo Matos dos Santos
Diretor de toxicologia e avaliação de risco na Altox Ltda. Graduado em Fármacia, e mestre em Saúde Pública (FSP/USP), com ênfase em Avaliação de Risco Toxicológico de fármacos. Eleito como membro consultivo da Sociedade Brasileira de Toxicologia (SBTox) nos biênios de 2017-2018 e 2019-2020. Ex-professor de Toxicologia e Avaliação de Risco no curso de pós-graduação em Ciências Toxicológicas da Faculdades Oswaldo Cruz – São Paulo-SP. Ex-pesquisador responsável do projeto PIPE FAPESP iS-Tox. Atuação de mais de 8 anos como toxicologista e especialista em avaliação de riscos, com experiência técnica em projetos, consultorias e treinamentos para empresas nacionais, multinacionais e agências de saúde. Experiência no uso de ferramentas computacionais (bases de dados) e modelos in silico; Avaliação de Risco, Toxicologia Regulatória, cálculo de limites toxicológicos, estratégias integradas de teste (ITS/IATA), adverse outcome pathways (AOP) e outros. Contribuições na Toxicologia que resultaram em publicações de livros, capítulos, monografias, artigos científicos, reports, pareceres técnicos, ferramentas/softwares in silico, premiações de pesquisa e outros.
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Além do estudo clínico brasileiro, um outro estudo clínico está em andamento no México, comparando a eficácia do NTZ e hidroxicloroquina contra o coronavírus SARS-COV2 (disponível em: https://clinicaltrials.gov/ct2/show/NCT04341493), e deve ser concluído em dezembro de 2020.